Maconha que Cura: A Jornada do Remédio que o Brasil (Ainda) Teme

Compartilhe:

Apesar de uso milenar, pacientes brasileiros sofrem resistência para a cannabis medicinal

Tratamento para reumatismo, malária, gota, alívio para dor de cabeça, ouvido, articulações e até para as dores do parto. Os primeiros registros do uso da Cannabis como remédio datam de 2737 a.C. em países do Oriente Médio. No século XV, vieram os primeiros relatos do uso da Cannabis para o tratamento de epilepsia. Mas foi em 1839 que um médico do exército britânico, William O’Shaughnessy, publicou um artigo em um jornal sobre medicina tratando da eficácia da Cannabis como remédio anticonvulsionante. William relatou que uma noite, uma mulher o procurou porque a filha pequena estava tendo convulsões contínuas, e nem se alimentava mais. O médico decidiu usar algumas gotas de cânhamo, uma substância da Cannabis, e os ataques convulsivos da menina cessaram como mágica.


Quase dois séculos depois, a solução que aliviou tantas dores e aflições no âmbito da medicina foi disseminada como um mal em todo o mundo. O uso recreativo da maconha como substância narcótica foi criminalizado no Brasil e em vários outros países – de fato, com fundamentos de que esse tipo de uso estaria associado à marginalização e ao vício, incentivando o tráfico de drogas e provocando efeitos irreversíveis à saúde. A comunidade científica, no entanto, não parou de estudar os benefícios e tratamentos potenciais com o uso do canabidiol como alvo terapêutico para várias enfermidades.


Com o tempo, estudos passaram a indicar que os derivados da Cannabis podem ser usados no tratamento de doenças neurológicas como Alzheimer e Parkinson, além de autismo, epilepsia e depressão. Há ainda evidências conclusivas da eficácia dos canabinoides contra dores crônicas, esclerose múltipla, e até no tratamento de câncer, apresentando efeitos antitumorais e também contra enjoos causados pela quimioterapia.

Regularização


A resolução 2113/2014 do Conselho Federal de Medicina (CFM) permite a prescrição do canabidiol (CBD) apenas por especialistas em neurologia, neurocirurgia e psiquiatria. De acordo com a norma, o uso é exclusivo para tratar epilepsias resistentes em crianças e adolescentes. Qualquer outro uso medicinal da cannabis é proibido pela resolução, e médicos de outras especialidades não têm permissão para prescrever.


Por outro lado, uma outra resolução do Ministério da Saúde, a RDC 38/2013 autoriza o acesso a “medicamentos em pesquisa” derivados da cannabis que podem ser benéficos para pacientes em circunstâncias especiais de tratamento. Além disso, há uma outra resolução (RDC 17/2015) também do Ministério da Saúde em parceria com a Anvisa, que estabelece critérios para a importação excepcional de produtos com base no canabidiol e outros canabinoides, como óleos, pomadas, extratos e outros remédios. Esses medicamentos só podem ser solicitados para uso pessoal com uma prescrição médica válida.


Apesar dessas resoluções, há poucos médicos familiarizados e abertos a estudar os tratamentos com derivados da cannabis. O maior desafio dos pacientes é encontrar profissionais habilitados para prescrever esses medicamentos, embora muitos já estejam reconhecendo as necessidades de seus pacientes, especialmente aqueles em condições de doenças crônicas e debilitantes, em que os canabinoides podem proporcionar alívio e qualidade de vida.


Foi dessa forma que Afonso Filho, 65 anos, conseguiu permissão para o uso do óleo de cannabis. Após complicações em uma cirurgia no joelho, as dores se tornaram crônicas e cada vez mais incapacitantes. O servidor aposentado viu seu humor se alterar por conta das dores, e sofreu inclusive com episódios depressivos. Com o apoio de uma equipe multidisciplinar, Afonso conseguiu da Anvisa autorização para as terapias com canabidiol, e hoje chega a afirmar que voltou a realizar tarefas básicas do dia a dia graças ao medicamento. “Eu cheguei a pensar em instalar, de forma amadora, um elevador dentro de casa, pois não conseguia mais subir ou descer as escadas. Estava ficando impaciente, mal humorado, passei a me isolar. Agora sinto que tenho pelo menos parte da vida de volta”, diz.


No fim do ano passado, o ex-senador e deputado estadual (SP) Eduardo Suplicy recebeu o diagnóstico com Parkinson, doença degenerativa do cérebro que começa com tremores, sobretudo nas mãos, e com o tempo vai provocando rigidez dos músculos, perda de equilíbrio e de reflexos. Após orientação médica, o político conseguiu importar um vidro de óleo de cannabis industrializado, e consome 15 gotas ao dia, e tem sentido menos tremores e mais conforto desde então. “Continuo muito ativo, faço minha ginástica três vezes por semana. Quero ressaltar que a cannabis não é o que sara, mas ela traz uma qualidade de vida melhor para todos”, afimou Suplicy em audiência pública na Câmara dos Deputados para discutir a regulamentação da produção e uso da cannabis medicinal para fins medicinais e terapêuticos.

Um passo à frente


Em junho de 2021 a Câmara dos Deputados chegou a aprovar, em comissão especial, o Projeto de Lei 399/15, que regulamenta o plantio de maconha denominada Cannabis sativa, para fins medicinais e a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta.

O projeto propõe ainda a produção e venda de medicamentos canabinoides em todas as formas farmacêuticas. A prescrição médica deve depender da concordância entre médico e paciente, mesmo que ainda não tenham tentado todas as alternativas terapêuticas. Já o cultivo de Cannabis será exclusivo para empresas autorizadas, em locais fechados e monitorados, e terão de seguir critérios de rastreabilidade, segurança e sempre com um responsável técnico para fazer o controle. Além disso, pela proposta farmácias do SUS também poderão cultivar a cannabis e produzir medicamentos canabinoides, como já fazem com outras plantas medicinais.


A votação foi apertada, mas o projeto deveria seguir direto para o Senado, o que não aconteceu. Alguns parlamentares apresentaram recurso para que ele fosse votado em plenário, mas não entrou em pauta desde então.


Após a audiência com o testemunho de Eduardo Suplicy e outros pacientes que se beneficiaram com o uso da cannabis medicinal, o político fez um apelo público ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para que coloque em pauta a votação da proposta no plenário.

Judicialização


Enquanto a regulamentação não é aprovada no Congresso Nacional, os pacientes que precisam da cannabis medicinal recorrem à justiça. No último dia 13/09, a Terceira Seção do STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou que o cultivo doméstico de cannabis para extração de óleo medicinal é permitido, confirmando o que já era aplicado por algumas turmas criminais do tribunal. Os ministros entenderam que o cultivo não visa a produção de entorpecentes, e que os usuários têm respaldo de prescrição médica e autorização da Anvisa para importar o canabidiol. A decisão pode servir de base para outros julgamentos sobre o tema, vindo a se tornar uma jurisprudência.

plugins premium WordPress